quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Alfredo é Gisele - Elisa Lucinda

     
Sora vê, daqui do táxi a gente sabe é cada coisa...  Sabe e aprende, aprende até a não ter preconceito. Outro dia peguei um casal assim já de meia idade, bem apessoado,  lá no centro, no Teatro Municipal. Eles tinham ido vê uma tal de uma Ópera, sei lá. Já eram umas 11 e meia da noite, a gente veio bem até o Aterro, entramos em Botafogo e o trânsito emperrou. A mulher já azedou na hora e foi falando para o marido:
- Que  trânsito é esse, quase meia noite? Não é esquisito, Alfredo?
      E o tal  do Alfredo parecia um homem rico mas não era fino, sabe ? E não gostava mais dela, eu acho. O cara era uma múmia. A resposta dele pras conversas da mulher tavam mais pra rosnado, sabe?
- Alfredo, isso não é uma absurdo? Nós aqui parados num trânsito quase de madrugada, não entendo, é estranho, hoje é sábado. Será que é algum acidente, Alfredo?
     Como o homem não dizia nada, aí e eu interrompi: com todo respeito sabe o que é isso madama? Simplesmente aqui virou um lugar só de "homensexuais"  e mulher sapatona. É  cheio de barzinho deles, a rua toda. Fim de semana ferve. Quem quiser ver homem beijando homem e mulher se esfregando em mulher, é aqui mesmo.

- Você tá ouvindo, Alfredo? Meu Deus, eles agora tem até bar pra eles, até rua!? Não é um absurdo, Alfredo?

- Ô Onça, cê me conhece, sabe bem como é que eu sou. Pra mim isso se resolve é  na porrada. Se eu sou o pai, desço do carro e não quero nem saber o que é que entortou, o que é que virou, não quero saber o que é cú e o que é fechadura, baixo o sarrafo na cambada! Eu, com sem vergonhisse, o sangue sobe, eu viro bicho.
- Pára de falar essas palavras de baixo calão, Alfredo. Hum! Fica de gracinha que a pressão vai  lá nos Alpes, você sabe muito bem o que é que o médico falou ..., não é motorista?  Alfredo não é muito esquentado?
Eu dei o meu pitaco:

- É madame, o negócio que ele tá falando é como eu vi no filme.  Uma metáfora. Ele não vai bater, vai só ficar zangado.
- E o senhor sabe o que é metáfora? O senhor entende de metáforas? Escuta isso Alfredo! O que é metafora, seu motorista?
- Metáfora pelo que eu entendi é assim:  aquilo não é aquilo, mas é como se fosse aquilo. Então, em vez da gente dizer que aquilo é como se fosse aquilo, a gente diz  que aquilo é aquilo.  Mas não é. É como se fosse. Foi?
- Eu acho que o senhor tá certo, mas na verdade eu estou é chocada com essa libertinagem. Olha aquele homem... que safadeza me Deus! E de bigode ainda! Escuta isso Alfredo!
- Escutar o quê, Coisa?
- O que eu estou vendo, gente! Ai, Alfredo, não está vendo? Parece que é cego, não é motorista?
- Hoje tá até fraco. Eu falei. Hoje nem tem os “general”?
- Quem são? Escuta isso Alfredo?
- General das sapatona é aquelas de coturno que parece mais com um  macho do que qualquer coisa. E o outro general é o homem transformista que é a traveca, mas anda é na gillete mesmo.
- Tá ouvindo, Alfredo? A violência e a decadência como estão?
- E a gente vai ter que ficar parado nesta merda, ô Coisa?
- Calma Alfredo, não fica nervoso! Isso é questão do nível das pessoas. A gente que tem... não é motorista? ...  mais condições,  temos que entender essa...,essa..., como é que eu digo, meu Deus? Essa...
- Putaria!
     Falamos juntos, eu e o tal do seu Alfredo com cara de doutor de num sei de quê.
- Cruzes Alfredo, não era isso que eu ia.... Alfredo, olha aquela moça! Gente, uma menina, dezoito no máximo, e a outra maiorzuda no meio das pernas da coitadinha, fazendo sabe lá o quê !!!  Tá vendo Alfredo aquela alí? Alí, aquela Alfredo, em cima do carro!  Olha lá Alfredo, a mão da grandona na menina! Elas vão ser  beijar na boca, minha Nossa Senhora...
- Que transitozinho, hein? nunca mais viremos por Botafogo, tá decidido!   
- Mas Alfredo olha a menina! Tá beijando, tá beijando, tá beijando Alfredo! Ela parece... Alfredo é Gisele! Alfredo! Nossa filha!?
- Filha da  puuuutaaa...
     E desmaiou o tal doutor,  enquanto a jararaca da mulé ventou porta afora de sapato na mão atrás das duas e eu pensando: não quero nem saber, encosto aqui mesmo e espero o resolver, que uma corrida dessa eu não vou perder, que eu não sou bobo e nem sou rico. É ruim de eu ir embora, heim?

     Então eu fiquei naquela situação: eu com um cara que era um ex-valente todo desmaiado no banco de trás parecendo uma moça, a mulé saiu pisando forte que nem um general, quer dizer, tudo trocado e eles reclamando da filha. Se eu pudesse eu ia lá defender a moça, mas não posso, já que o negócio é de família, né?
Eu não tenho preconceito, mas é isso que eu tava falando pra senhora: daqui a gente sabe cada coisa! E é  cada um com o seu cada qual.   

MON ANIMAL - Elisa Lucinda

     Eu a vejo quase todas as manhãs.  Não é exatamente bonita.  Aliás ela é de uma feiura estranha como se carregasse uma boniteza espalhada em si, nos gestos e não nos traços exatamente.  Não importa.
Importa é que a vejo acompanhada perenemente pelo seu cão.  Um pastor alemão com cara de bom companheiro.  E o é.  Eu vejo.  Olha-a muito, encaixa seu focinho entre os joelhos dela, brinca com ela, gane querendo dengo.  Ela também, essa minha vizinha de uns quarenta e vividos anos, brinca de não-solidão com esse cachorro específico;  gosta dele, ri:  Não Duque, assim não, deixa o moço, Duque, me espere.  Não vá na minha frente assim, cuidado com o carro, menino.  Ele a olha como quem agradece.  E vão os dois, não em vão, pelas ruas de Copacabana sob o sol, felizes que só vendo.  Eu vejo.

     Eu vejo Duque lambendo as mãos dela, as magras mãos cujos dedos ela oferecia de propósito e distraidamente a imordida dele.  Eu olho admirando receosa por conta dos afiados dentes dele.  Quase não entendo de cães. Ela é camelô;  nos encontramos no elevador e eu:  - Vocês se divertem tanto, é tão bonito.                - É, nos conhecemos na rua.  Ele olhou pra mim bem nos meus olhos.  Eu estava trabalhando.  Vi logo que era um cão bem cuidado fisicamente mas faltava-lhe carinho.  Deixei minhas bugigangas (ela vende coisas que querem imitar jóias antigas) por não sei quanto tempo e fiquei agachada na calçada na Avenida Nossa Senhora, só namorando ele.  Decidimos que ele viveria comigo.  Naturalmente.  Tudo aconteceu “naturalmente”, ela frisou, como se quisesse dissipar de mim qualquer sombra de suspeita de um possível roubo.
     Noutro dia no mesmo elevador, ela com seu carrinho de balangandãs, eu e Duque.  O elevador apertado e ela continuou femininamente a conversa do último elevador nosso:  Tenho certeza que ele é de câncer.  É muito sensível.  Só falta falar.  Né Duque? ... ele não é lindo? Eu disse:  Lindíssimo.  E você que signo é? Ah, sou capricórnio mas com ascendente em câncer, combina sim.

     - Ah, você tem medo...  ô não ofenda ele;  Duque entende pensamentos e não gostou do que você pensou.  Jamais me morderia, jamais me trairia.  Né Duque?
Senti o pensamento de Duque latindo que jamais a trairia.  Achei bonito.
Chegamos.  Tchau, bom trabalho.  Tchau Duque.

     Fui para a rua pensando longamente nos dois.  Depois pensei nos mistérios da astrologia e perdi o fio do meu pensamento. Ao final da tarde avistei pela janela Duque e Ângela indo ver o crepúsculo na praia.  Depois vi os dois voltando sorridentes e caninos, sob a noite estrelada;  ela com fitas de vídeo penduradas ao braço;  sempre conversando com ele.


          




 
   Tenho inveja de Ângela.  This is the true.  O animal que eu quero não mora comigo, não almoça mais comigo, não brinca mais, não me telefona, não me advinha os pensamentos, não me acompanha ao crepúsculo, não gane querendo dengo, nossos signos parecem não mais combinar.  O animal que quero, pensa demais e por isso não passeia mais comigo.  

                                                       E o pior:  Não me lambe mais.

Um Dedinho de Amor - Elisa Lucinda

       Mamãe tinha cinco filhos e um marido que amava, mas nunca associara amor de casamento com os frutos dessa união. Não tinha um dedinho de consideração por nós. O Kiko ficou reprovado pela 2ª vez na mesma série, e ela disse apenas folheando o jornal: é novo, ano que vem passa.

        Eu pequena, olhava aquela hereditariedade de desafeto, aqueles irmãos vindo antes de mim sem afago de mãe. Eu caçula, observava e pensava: qual será a escala para escalá-la? Nada. Era sempre uma mãe distante, mãe montanha, mãe gigante, mãe longe, não imbuída de nos amar, não incumbida dos mais naturais cuidados: merenda, beijo, histórias na hora de dormir, preocupações pentelhas – Não suba no muro, não caia daí!

        Ai, era uma mãe extra mater. Parecia que estivéramos todos fora dela quando dentro.
Até que um dia o irmão do meio adoeceu sinistramente na sexta e no domingo definitivamente nos deixou. Eu mal chorava. Tudo em mim eram olhos espantados de ver minha mãe assolada de uma ternura mórbida, porém ternuríssima, sobre o corpo: meu filho, meu amado, meu preferido, minha vida. Proferia ela amorosos impropérios destoantes do que eu  entendia como real até então. Na dor da perda, minha mãe amava mais aquele filho do que a todos quando nasceram:  filho meu, bendito filho meu, o que será de mim?

        Compreendi que a culpa disparava nela um amor retroativo, forte, maravilhoso que, se não ressussitara meu irmão, tamanha sua força, em mim produzira uma extensa lavoura de esperança de afeto.

        E fora assim desde então. Se algum adoecia, minha mãe fechava as portas dos jornais, da televisão, do marido, do mundo, pra ser só mãe daquele filho enfermo. Cabeceiras insones, histórias contadas até a febre se render, beijos longos que diziam: não me deixe amado, não me deixe.

        E eu? Eu tinha era uma filha da puta de uma saúde que teimava em não me largar. Todo mundo lá em casa pegava gripe forte, porque ainda não existia dengue, pegava hepatite tipo analfabeta, porque ainda não havia classificação, caxumba, catapora e infecções sucessivas de garganta. E eu, boinha da silva! Me encostava em todos, me oferecia para cuidar; pequenina ainda, queria respirar o ar contaminado do sangue irmão. E nada. Ela mesmo dizia: essa não precisa de mim. E eu precisava.

        Então passei a perseguir acidentes naturais, árvores altas, bombas proibídas em São João, altas velocidades em carrinhos de rolimã, mãos perto demais das fogueiras, mas nenhum galho fraco era meu cúmplice, nenhuma bomba amiga minha,  explodira, nenhuma ladeira era minha companheira, nenhuma chama minha irmã.

        Um dia, tinha só cinco, fui na gráfica do meu pai. Pensei, vou machucar um pedacinho do meu  dedo, vai doer, vai ter sangue, curativo, lágrimas de minha desejada mãe, alguma febre, choro meu, colo, colo, colo e,  só depois, muito depois, conserto. Só que a máquina era lâmina e minha matemática, pouca. Calculei mal. Pus o mindinho na guilhotina e fechei os olhos pensando nos olhos de minha adorada mãe que eu  ainda não havia experimentado acolhedores sobre mim. Eu era a última, a menorzinha, a despedida da prole, carregava a impressão de ter nascido e ouvido um adeus ao mesmo tempo. A máquina decepara meu dedo. Deixara apenas uma falange-cotoco primeira, uma base de dedo. Foi rápido. Sangue, muito mais sangue do que eu previa. Torpor.

        Meu pai desesperado trazido amparado pelos empregados eu não vi. Vi só minha mãe morrendo de dor pelo dedinho meu que perdi e que em mim não doía e nem fazia falta.
- Minha filha, minha filhinha adorada, minha preferida, minha garotinha amada, mamãe tá aqui, tá doendo? Responde, tá doendo?   E, eu mentindo: muito mamãe, muito. Mas, não doía nada. Se doía, o amor de minha mãe vindo assim em lufadas inéditas sobre mim que era um machucado só, estancava qualquer dor. Se confessasse, poderia perdê-la de novo. Então perdi um dedinho, um mísero dedinho pra ganhar uma mãe.

        Fui crescendo feliz com mimo por aquela mãozinha manca. Na escola, no primeiro dia de aula, me divertia em enfiar essa falange vitoriosa no nariz para que a professora de  estréia pensasse que havia todo o dedo dentro dele. Ela repreendia: o quê é isso Cristina? Tira o dedo do nariz! Que coisa feia, menina feia que você é. Vai se machucar assim. Então, eu tirava a falange mínima, quebrando a ilusão ótica no nariz da mestra. E ela: ô, desculpa querida, me perdoa, a titia não sabia...

        E olhava com olhos de se olhar com pena sobre os aleijados e muito arrependimento daquela gafe. Eu gostava da cena. Repeti isso por todo primeiro grau, a cada primeiro dia de aula. Era uma beleza.

        Nunca mais perdi minha mãe. Nunca mais fiquei boa do dedo e nem ruim dele. Nunca quis ele de volta. Quem quis ele era a minha mãe. Por muito tempo, fiquei dando meus pedaços para ser amada. Agora não.

        Minha mãe ainda quer meu dedo de volta. Eu não quero mais nada. Tenho mãe. Dar um dedinho por uma mãe é muito pouco. 

        Antes de mim,  ela não tinha um dedinho de consideração por ninguém dos filhos. Agora tem.